Todos os dias eu passava na frente daquela casa. Não podia evitar, fazia parte do meu caminho, eu era obrigado a passar por ali se não quisesse andar alguns quilômetros a mais. O problema não era exatamente a casa em si, que até que não era feio. Sua pintura descascava em alguns pontos e estava manchada em outros, o portão enferrujado estava sempre aberto, o que não tinha muita importância, já que seus muros não passavam muito de um metro de altura.
O problema era a atmosfera do lugar. A casa emanava uma sensação ruim. Ninguém gostava realmente de passar por ali, mas a maioria, como eu, era obrigada a isso. Ela ficava bem no meio de um atalho que usávamos e que diminuía em muito a distância entre a vila que morávamos e a cidade, já que a estrada dava uma volta grande e ali íamos por uma estrada de terra mal cuidada que seguia uma linha quase reta pela mata. Esse era outro problema.
A casa era isolada de tudo o mais, bem no meio de uma clareira já meio tomada pela vegetação e ficava na única curva da estrada, escondida pela angulação. Você estava andando e, de repente, a casa aparecia na sua frente, como uma assombração, e, do mesmo jeito que vinha, quando você olhava para trás, ela simplesmente não estava mais lá. Era assustador.
Só passávamos por ali de dia, ninguém se arriscava à noite. Isso porque havia uma história, do tempo da infância de nossos pais, de que uma vez um grupo de amigos entrara ali, com o propósito de explorar a casa, como muitos de nós alguma vez já tivemos vontade de fazer, mas nunca criamos a coragem necessária. O fato é que eles criaram, e entraram.
Dias se passaram desde a entrada deles lá, a polícia foi enviada ao local por um integrante do grupo que não teve coragem de entrar. Vasculharam a casa inteira a procura dos garotos. Nenhum deles foi encontrado. Não havia vestígios da presença deles lá, nem vestígios de luta, ou, na pior das hipóteses, sangue. Eles simplesmente desapareceram. Nenhum deles se sentiu a vontade de estar ali, disseram que o ar lá dentro era pesado, difícil de respirar e era como se uma presença os espreitasse em cada cômodo, cada corredor, cada fresta. No segundo andar da casa, encontraram um alçapão no teto, uma entrada para um sótão, dentro de um quarto, o mais afastado da entrada, nos fundos da casa, perto da mata.
Eles tentaram chegar perto, com o intuito de abri-lo, mas naquela hora todos perderam a coragem. O que quer que existisse naquela casa, estava naquele sótão, disso eles tinham certeza. A respiração deles ficou presa no peito, disseram, e o coração batia tão rápido que atrapalhava a audição. O silêncio era mais do que profundo, era audível, até mesmo os movimentos ali pareciam ser mais difíceis. Eles não sabem quanto tempo ficaram naquele quarto, o fato é que eles não demoraram a vasculhar a casa inteira e encontraram o alçapão apenas uma hora depois de entrarem na casa. Segundo eles, logo depois de o encontrarem e ninguém ter tido coragem de abri-lo, eles simplesmente saíram praticamente correndo da casa, assim que conseguiram se mover. Só que, quando eles saíram, já era quase noite.
Esse foi o único dia que procuraram pelos garotos, depois do relato dos policiais, nem mesmo a família dos desaparecidos quis que as buscas continuassem. Deram-nos como mortos e fizeram os enterros simbólicos. Depois disso, não falaram mais na história.
Mesmo assim ela se perpetuou e chegou até mim, até nós, a outra geração. Ninguém nunca mais, que se tivesse noticia, entrou naquela casa. Segundo os mais velhos, ela continuava exatamente como sempre foi: silenciosa, escura e amedrontadora.
Um dia eu estava saindo de casa, indo para a cidade, porém estava atrasado. Já era quase noite e eu tinha marcado com amigos de ir ao cinema. Meu pai não tinha carro, por isso eu ia a pé até lá todas as vezes que precisava.
Parei na bifurcação das duas estradas, a de asfalto e a de terra, e, reunindo toda a minha coragem, entrei pela escuridão da de terra.
Como ela era muito utilizada pelos moradores do vilarejo, tinham colocado iluminação ali. Fui andando rapidamente, desviando dos morros irregulares de terra, passando por cima de galhos mortos, quase se levantar os olhos do chão e sem olhar para trás.
Talvez fosse apenas o medo, mas o caminho parecia mais longo do que o comum. A casa já devia ter chegado não devia?
Senti uma forte sensação no peito, um aperto quase doloroso e, contrariando todos os meus instintos e também a razão, olhei para a frente.
Eu estava na frente daquela casa, virado para ela, que me encarava com suas janelas pregadas e malignas. Nessa hora percebi que os postes dos dois lados da casa estavam apagados. Olhei para eles, que tinham uma aparência de nunca terem sido acesos uma única vez. Será que era sempre assim com eles? Eu nunca tinha passado ali à noite e nenhum de meus amigos fazia isso também, então eu não tinha como saber.
Olhei para um lado e depois para o outro. As luzes brilhavam quase que longe demais, seus raios parando de um modo errado na direção da casa, como se estivessem viradas para o outro lado. O círculo que elas iluminavam no chão não era um círculo. Eles paravam abruptamente quando chegavam perto da casa, contornando o chão em volta como se não tivessem a capacidade de penetrar naquela escuridão.
A mata em cima era fechada, não permitindo que nem mesmo o brilho de uma estrela chegasse até mim. A casa, porém, ao contrário do que deveria acontecer, estava nítida para mim, ainda que as luzes dos postes não fossem capazes de alcançá-la. Ela parecia emanar uma luz negra, que mostrava mas não iluminava.
Não sei quanto tempo fiquei parado ali, apavorado demais para conseguir me mexer e fascinado demais para seguir em frente. Alguma coisa lá dentro me chamava, em atraia, convidando-me a entrar.
Dei um passo à frente. Minha parte racional lutando inutilmente contra a força que me impulsionava. Não era eu que estava dando o comando para minhas pernas se mexerem. Mais um passo e meu coração batia tão rápido que eu não conseguia diferenciar uma batida da outra, meus ouvidos retumbando naquele silêncio impenetrável.
Cheguei mais perto do portão, que se abriu silenciosamente um pouco mais para me receber, receber minha alma. Meus olhos estavam presos pela escuridão do umbral da porta que, pelo que eu me lembrava deveria estar ali, pregada como havia sido pelos policias há décadas. Só que ela não estava mais ali. Em seu lugar havia apenas um buraco que engolia tudo ao redor: sons, luzes, emoções, sentimentos, vidas. Passar por ali significaria não voltar.
Eu sentia a força de uma presença assustadoramente maligna me chamando, confundindo meus sentidos, convidando-me a participar de si, penetrar sua essência e de lá não mais sair.
A morte emanava de cada prego daquela casa, mesmo assim não tive forças suficientes para fazer minhas pernas obedecerem ao que minha mente gritava: CORRA!
Estava parado no hall agora, a porta escancarada como uma boca para me receber, me engolir. Nada era discernível dali. Dei mais um passo e atravessei a soleira. Nesse momento, tudo silenciou, inclusive minha mente. Meus instintos ainda me diziam, gritavam, que eu não deveria estar ali, porém eu não era mais capaz de produzir um pensamento sequer.
Andei sem pensar mais para frente, adentrando no intimo daquele lugar. Parecia uma sala ampla, sem móveis, pois não esbarrei em nenhum, maior por dentro do que parecia por fora. De repente, estaquei. Eu sabia que estava cercado, sentia que havia alguém, algo, ali. Levantei rapidamente os olhos do chão e o que estava ali, não estava mais. Vi apenas o vislumbre de uma capa negra. Não parecia ter se mexido, mas sim se fundido à escuridão assim que olhei para ele.
Dei uma volta no meu corpo e olhei atrás de mim, esperando ver a porta por onde entrei. Mas ela não estava mais ali. Eu estava cercado por sombras, podia sentir a amplidão do lugar que me engolfava, a atmosfera densa dificultando a respiração.
Vi mais daqueles vultos encapuzados, mas, sempre que eu fixava um deles, eles misturavam-se à escuridão sua criadora. Fixei um ponto qualquer no ar, deixando minha visão desfocar. Pelo canto dos olhos comecei a enxergar sua figuras formando-se ao meu redor. Um circulo amplo me envolvia, suas cabeças baixas cobertas por capuzes negros, mais negros que a noite eterna que envolvia o lugar. As silhuetas saltavam aos olhos e agora eu conseguia vê-los todos. Eram pelo menos uns vinte, a me cercar e observar, apavorar.
O pânico finalmente conseguiu vencer a força que abafava as emoções. Tentei gritar de terror mas minha voz ficou presa na garganta. Precipitei-me na direção de um deles, seu corpo imaterial dissolvendo-se no ar ao encontro do meu. Corri sem direção, sem saber para onde ir, tendo a certeza de que dali eu jamais sairia.
Tropecei em alguma coisa e fui para o chão. Bati meu rosto com força em alguma coisa que estava acima do nível do chão invisível. Tateei ao redor e percebi que estava em uma escada. Estendi um pé para baixo, me levantando, e, ao invés de encontrar o chão plano de antes, encontrei apenas mais um degrau. Desci-o e, embaixo, havia outro e mais outro, a escada não parecia ter fim.
Senti o sangue que escorria pelo meu rosto, a dor abafada em algum lugar distante do meu cérebro entorpecido.
Olhei para os meus pés, mas eles não pareciam mais estar ali. Eu podia senti-los e mexê-los, mas a sua imagem estava desaparecendo, desvanecendo. A escuridão estava impregnando-se em mim irreversivelmente.
Subi correndo a escada, sabendo que aquilo não era uma boa ideia. Cada degrau vencido aumentava a sensação de o alto era a pior escolha possível. Uma pequena parte de lógica surgiu na minha mente e disse que não havia pior ali, a morte não estava em cima, a casa era a própria morte. Pior talvez. A casa não era a morte. A Casa era o terror, e ali estava eu, mergulhado nas trevas de um terror sem fim.
A escada terminou abruptamente e eu tropecei, quase caindo. Estendi as mãos para os lados e percebi que estava em um corredor. Fui andando por ele, sentindo uma inquietação no meu intimo. Havia alguma outra presença ali que não a da casa e a que habitava e era ela. Sussurros pareciam encher o ar, bruxuleando ao meu redor.
Uma brisa súbita balançou meus cabelos. Parecia haver alguma coisa nas paredes, estranhas formas incrustadas. Fui chegando mais perto de uma delas e, quando estava perto o suficiente para discernir, preferi não ter visto.
Era um rosto. Um rosto apavorado, olhos arregalados de pânico, a boca aberta em um grito interminável, eterno. Me afastei rapidamente, batendo na parede do outro lado. Senti o roçar leve de fios de cabelo no meu rosto. Me Virei instantaneamente e deparei com outro rosto, a centímetros do meu, a mesma expressão de terror, a garganta visível como uma escuridão engolfante.
Os olhos de repente se mexeram, fixando-me. Atrás de mim eu sabia que o outro rosto fazia o mesmo. Comecei a me afastar, avançando no corredor. Os rostos começaram a se separar da parede, revelando corpos disformes que eu não me interessei em avaliar. As bocas escancaradas sorriam para mim nas bordas, avançando na minha direção. Choquei-me contra algo que estava no meio do corredor. Antes mesmo de olhar, eu já sabia o que era.
Um outro rosto, e mais um, estavam ali, já fora da parede, diferentes entre si, iguais em seu eterno terror. Eu sabia quem eles eram, os quatro que, há décadas, entraram na casa para nunca mais voltar.
Sem conseguir gritar, desviei-me daquelas assombrações e rumei descontrolado para o fim do corredor, que sumiu abruptamente, revelando um cômodo mais largo, uma janela pregada ao fundo. Olhei para trás, esperando ver as assombrações me perseguindo. Não havia mais nada ali.
Algo me observava de trás. Girei o corpo e levantei os olhos para o teto.
O alçapão. O sótão.
Minha mão subiu contra a minha vontade, indo em direção a ele, que me chamava irresistivelmente.
Agora eu já sabia o que aconteceria a seguir. Eu não morreria. Me transformaria em mais um rosto na parede, paralisado para sempre no terror do momento que levaria minha alma, deixando um corpo vivo para sempre, mergulhado no terror e na escuridão.
Parei o movimento pela metade, pouco antes de alcançar a alça no teto baixo. A presença que se agitava por trás daquela porta ficou mais forte, mais próxima. Me afastei um, dois, três passos, tropecei nos meus pés e cai.
Antes de chegar ao chão, o alçapão se abriu violentamente com um barulho alto e eu gritei, gritei com toda a minha força, mais alto do que já tinha gritado na vida, quando um rosto, uma sombra, uma escuridão, o terror, avançou sobre mim, seus dentes arreganhados prontos para me engolir, os cabelos negros esvoaçando ao redor enquanto ela me abraçava em um aperto inquebrável e eu sentia que virava parte daquilo tudo, me transformaria em mais uma assombração no corredor, vivo e morto ao mesmo tempo, eternamente aprisionado ali.
Senti que tudo o que eu tinha sido era sugado de mim, o som ensurdecedor de um vento feroz passava pelos meus ouvidos, abafando meus gritos desumanos, meu corpo ficando cada vez mais gelado, menos humano. Não fui capaz de um único pensamento feliz naquela hora, estava deixando de ser eu mesmo e não podia fazer nada.
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