A fogueira queima lentamente no centro do
nosso círculo, iluminando os rostos disforme e bruxuleantemente. Todos parecem
meio assustados, meio temerosos. Admito, apenas para mim, que estou um pouco
ansioso também. É impossível não entrar nesse bosque no meio da madrugada, sem
lua ou estrelas no céu, apenas com uma fogueira para iluminar o ambiente, e não
ficar nervoso. Ainda mais conversando sobre o que estamos conversando. Bem, no
meu caso não é nervoso, apenas ansioso.
Raquel acabou de contar sua história. É a
minha vez. Todos tinham que contar uma, fosse inventada ou (supostamente) real.
A história dela foi assustadora, tenho que
concordar. Mas eles não fazem ideia de como é a minha. Ela é muito mais real.
Pigarreio, chamando a atenção de todos. Os
sussurros somem na mesma hora. Sinto a curiosidade deles ao olhar para mim, a
forma como estão intrigados. O único som que escuto é o crepitar suave da
madeira enquanto queima, a fuligem se erguendo da fogueira. Vejo um ou outro
começando a abrir a boca para falar, mas começo primeiro.
- A minha história é sobre uma lenda que
talvez seja pouco conhecida, originada a não muito tempo, talvez cem ou
duzentos anos, quem sabe. Provavelmente a maioria de vocês nunca ouviu falar
dela, mas nem por isso deixa de ser real. Vou falar sobre uma história que
aconteceu vinte anos atrás. Vou falar sobre “O Ilusionista”.
Respiro fundo e começo a contar:
O ar estava morno e parado, sem vento
algum, formando um silêncio quase absoluto bem no meio da cidade. A madrugada
estava avançada, o que tornava o fluxo de carros bem menor, contribuindo para o
silêncio que chegava a ser assustador.
Furtivamente, cinco pessoas atravessam as
ruas, andando rapidamente, sem correr. Quando chegam ao seu destino, param,
olhando nervosamente ao redor.
“Cara, a gente não devia entrar aí”, fala
um deles, um garoto alto e magro, com óculos no rosto e cabelos curtos e
espetados.
“Para de ser medroso, Thiago, não tem nada,
é só um parque”.
“É, e nem é tão grande assim”, uma voz
feminina se manifesta. A dona dela é pequena, cabelos tingidos de vermelho
escarlate, bem magra. “Tá com medo de ficar perdido aí, Thiaguinho?”, termina,
em tom de gozação.
“Cala a boca, Thabata”, ele retruca.
A garota ri.
“São as histórias”, outro garoto fala. Ele
é mais baixo que o Thiago, porém bem mais forte. “Ele acha que as histórias que
ele lê são reais”
Todos começam a rir, menos aquele que é o
alvo da zoação. Por trás dos óculos, os olhos de Thiago brilham de raiva.
“Afinal, Gabriel, estamos entrando num parque
escuro, no meio da madrugada, justamente para contar histórias de
terror, não é?”, outra voz de garota fala, dirigindo-se ao garoto forte. Ela,
por outro lado, é toda cheia de curvas, bem delineadas e expostas pelo short
curto e o decote da blusa, o cabelo preto e liso desenhando um dos seios.
Thiago abre a boca para falar, porém, é
interrompido antes mesmo de tomar fôlego.
“Vocês querem parar de falar? Vão acordar a
rua inteira assim”, era um terceiro garoto que falava, pouco mais velho que os
outros, de olhar inteligente. “Chega, Amanda”, ele corta a garota morena.
“Ui, ele é quem manda por aqui”, ela
responde, erguendo as mãos no ar. Todos riem.
“Eu estou mandando vocês calarem as bocas e
pularem logo essa grade”, Guilherme responde.
Gabriel bate uma continência.
“Sim senhor, senhor. Batalhão, temos que
obedecer às ordens do comandante Guilherme imediatamente”.
Guilherme, o de ar inteligente, dá um soco
em Gabriel, que se defende e empurra o amigo para longe.
Rindo, todos eles escalam a grade do parque
e logo estão do outro lado, não sem antes Thiago conseguir prender a perna da
calça em uma das lanças do alto da grade e precisar da ajuda de Guilherme e
Gabriel para descer, com um belo rasgo nos jeans.
Aos risos e cochichos, o grupo de amigos
avança para o interior do parque.
Ainda que parecesse impossível antes, o
silêncio se torna ainda mais intenso quando as árvores se fecham ao redor deles
e todo e qualquer indício de civilização desaparece. O parque não tem trilhas,
muito menos caminhos pavimentados. É, na verdade, um bosque com cercas ao
redor.
Em finais de semana, seja em dias nublados,
chuvosos, frios ou ensolarados, o bosque era sempre repleto de pessoas fazendo
trilhas, piqueniques, se divertindo. Em uma quarta-feira às 5 da manhã, com os
portões fechados, com certeza não havia ninguém lá. Ou pelo menos é o que
quatro deles acreditavam.
Assim que as árvores escondem as evidências
de que estão no meio da cidade, e não perdidos na mata atlântica, um arrepio
percorre Thiago.
Talvez ele estivesse exagerando mesmo, como
diziam os amigos, mas as histórias que se contavam, as lendas que
envolviam pessoas sozinhas na mata de madrugada, eram numerosas demais, e eles
estavam indo ali justamente para falar destas lendas, as quais ele conhecia
todas, é claro.
Andaram por um bom tempo por entre as
árvores altas que escondiam qualquer luminosidade da lua ou das estrelas,
praticamente às cegas, tendo apenas um pequeno lampião como guia. Gabriel
dissera que ajudava a entrar no clima da aventura, e Thiago o odiara
intensamente no momento em que deu a ideia.
Todos ali já haviam andado muitas vezes
pelo bosque, conheciam-no muito bem. Estavam indo até uma clareira que tornava
possível um vislumbre da lua, que, naquele dia, estava na sua fase
"nova" e não ajudaria em nada mesmo que seu brilho pudesse atravessar
as folhas densas.
Pelo menos não corremos o risco de
encontrar lobisomens, mas há muitas coisas que surgem na lua nova, fantasiou
Thiago, apenas em pensamento. Se dissesse isso em voz alta com certeza seria
zoado para o resto da sua vida.
Por mais que nunca tivesse visto nada,
Thiago acreditava ferrenhamente que todos os monstros que já apareceram em uma
história eram reais. Bem, não todos. Algumas coisas são absurdas demais até
para ele, contudo, em relação ao resto, ele era adepto da filosofia "se
não pode provar que não existe, é porque existe". Uma lógica falha, mas
tal fato fugia à sua percepção.
Depois de um bom tempo caminhando,
finalmente chegaram à clareira. Em duplas e silenciosamente, ocuparam-se em
recolher galhos e gravetos para uma fogueira.
- Alguém trouxe fósforos? - veio a pergunta
de Amanda.
Todos se olharam lentamente, percebendo que
tinham esquecido apenas o essencial, quando, de repente, uma luz azul se acende
na escuridão.
- Pra que fósforos se tenho meu
brinquedinho?
Gabriel tirara um daqueles isqueiros com
tampa do bolso. Manipulou-o agilmente por entre os dedos, fazendo malabarismos
com ele, até que, em alguns segundos, as chamas se espalharam pelos galhos.
Meia hora depois, o fogo ardia lentamente
no centro. Era proibido acender qualquer tipo de chama ali, eles sabiam, mas o
bosque não tinha vegetação rasteira, por isso as chances de provocarem um
incêndio eram baixas, e com certeza não tinha ninguém para vê-los.
De repente, quando todos estavam de olhos
fixos no fogo, um brilho forte e azulado se acendeu. Todos se sobressaltaram.
Em seguida, veio a risada baixa de Guilherme.
“Não podia faltar justamente a lanterna,
não é?”, disse ele, com o rosto iluminado de baixo para cima.
Os outros o acompanharam. Um pouco
nervosos, porém.
“Lendas urbanas...”, tornou Guilherme a
falar, em um tom meio sombrio e baixo, pouco acima de um sussurro. “Quem nunca
ouviu uma, não é?”, seus olhos passavam por cada um dos seus amigos enquanto
falava. “Quem nunca temeu uma?”.
“O Thiago tem medo de todas elas”, Gabriel
soltou. As duas garotas riram. O outro garoto apenas estremeceu levemente.
Guilherme, entretanto, olhava de uma forma
estranha para o amigo, uma forma intensa, que o fez se arrepiar outra vez.
Um sorriso enviesado tomou forma nos lábios
do garoto que narrava.
“Ele com certeza é muito mais esperto que
qualquer um de vocês três. Ou acham que a escuridão não oculta nada que devemos
temer?”.
Instintivamente, as garotas olharam para os
lados, tentando penetrar as sombras que vulteavam por todos os lados. O fogo
pareceu brilhar um pouco menos, como se fosse subjugado às forças das trevas.
“Estamos aqui, no meio da mata, com apenas
uma lanterna, um lampião e uma fogueira, na hora mais escura da noite, aquela
que antecede o alvorecer, onde as criaturas das trevas são mais fortes, e vocês
acham mesmo que não há nada que precisam temer, logo ali, escondido na mata,
além do alcance de nossas luzes?”.
Uma leve brisa sacudiu o ar parado e fez
bruxulear a fogueira, como que dando ênfase às palavras de Guilherme. Nem
Gabriel parecia tão corajoso como quando pularam a grade. Apenas Guilherme
parecia despreocupado, escondendo suas emoções atrás de um sorriso
estranhamente encorajador e de um olhar intenso, quase faminto. Thiago havia
visivelmente começado a suar.
“Lendas sobre criaturas que transcendem a
realidade, coisas que deveriam habitar apenas o imaginário, existem desde o
momento em que o ser humano descobriu a existência do medo. De onde surgiram
essas lendas? Será que foram todas inventadas? Ou será que cada uma delas
nasceu a partir de fatos?”.
Um tremor involuntário percorreu o corpo de
Amanda, que se aproximou mais do fogo e abraçou os joelhos.
“Eu acredito que todas elas têm seu fundo
de verdade. Com certeza foram modificadas com o passar dos anos, mas quem aqui
tem coragem de entrar em um banheiro, dar a descarga três vezes e dizer três
palavrões sobre o vaso sanitário e depois olhar no espelho para ver se a loira
do banheiro aparece?”
Thabata estava com uma cara de que nunca
mais iria ao banheiro sozinha, enquanto Thiago respirava tão profundamente que
era óbvio que se esforçava para se controlar. Se estivessem todos em um quarto
bem iluminado, na segurança de suas casas, todos estariam sorrindo
desdenhosamente para Guilherme, mas eles já tinham ouvido várias lendas
urbanas, inclusive algumas envolvendo aquele local, e cada um deles acreditava
em algumas delas.
“Eu, particularmente”, continuou aquele que
parecia o único que conseguiria fazer a voz sair, “gosto muito de uma lenda
sobre este bosque”. Thiago deixou escapar um gemido estrangulado
“Querem ouvir?”.
Ninguém respondeu. Era óbvio que não
queriam, apenas pelas suas expressões. Mas afinal, não era esse o intuito
daquela reunião? Só que planejá-la havia sido muito mais empolgante e
despreocupado do que efetivamente estar ali.
Guilherme, lentamente, levantou-se, de
lanterna na mão, e começou a percorrer o círculo iluminado pela luz da
fogueira. Cada vez que um graveto quebrava ou uma folha era esmagada, Thiago se
encolhia.
“A lenda conta sobre uma garota que, um
dia, saiu para passear pelo bosque sozinha, afastando-se de seus pais sem que
eles percebessem, e então se perdeu aqui e ficou presa quando o anoitecer caiu.
Tremendo de frio e medo, caminhou por horas, sem encontrar nada nem ninguém,
até que viu uma luz e a seguiu. Quando chegou ao ponto, encontrou um grupo de
jovens, como nós, que estavam sentados conversando. Porém, ao contrário de nós,
estes jovens tinham uma índole má. A garota não devia ter mais do que treze
anos, começava a formar seu corpo, ao contrário de algumas garotas de hoje em
dia”.
Guilherme olhou maliciosamente para Amanda,
que subiu mais a blusa, escondendo os seios. Sua lanterna varria as árvores
aleatoriamente, indo além da luz do fogo. Os olhos de Thiago, vidrados,
acompanhavam o facho de luz.
“Ela falou com eles e perguntou se podiam
ajudá-la a reencontrar seus pais. Era uma garota inocente, não entendeu o
significado dos olhares que lançavam a ela, dos sorrisos repugnantes”.
"Eles acabaram abusando da garota, e
depois a mataram. Cinco noites depois, várias pessoas foram encontradas
mutiladas, e por mais que ninguém soubesse da ligação entre os casos ainda, não
demoraram a perceber que eram alguns jovens que haviam desaparecido dois dias
depois da garota sumir. Os pedaços eram tantos que tiveram dificuldade em
descobrir quantos corpos eram, e só conseguiram quando contaram o número de
orelhas”.
Um arfar alto e abafado escapou dos lábios
de Amanda. Guilherme continuou como se não tivesse notado.
“Sabem onde encontraram os corpos?”.
Os olhos dos três se arregalaram, todos
querendo que ele não dissesse o que estava prestes a dizer.
“Exatamente nessa clareira".
"Foi meu pai quem me contou essa
história. Desde este dia, décadas atrás, qualquer pessoa que fica neste bosque
depois do anoitecer é encontrada por ela, esteja perdida ou não. Então a garota
a mata. Muitos já desapareceram aqui, sabiam? Alguns nunca foram encontrados.
Aqueles que foram... bem, vocês podem imaginar o estado em que estavam”.
Thabata e Amanda se abraçaram com força,
esquecendo-se completamente de tentar ocultar o medo. Gabriel tentava parecer
corajoso, mas estava tão duro que parecia que nunca mais levantaria dali.
Guilherme tornou a se sentar em frente à
fogueira, desfez o sorriso e falou em um tom normal, o que ajudou a quebrar o
clima de tensão.
“E vocês, qual a lenda de que mais
gostam?”.
Vendo que os outros não falaram nada,
Gabriel se prontificou a contar, ainda tentando parecer corajoso.
“Blood Mary. Longe de um banheiro é difícil
acreditar, mas já tentou dizer isso três vezes na frente do espelho com as
luzes apagadas? Eu travei na segunda vez, não consegui dizer por nada nesse
mundo a terceira”.
Guilherme riu.
“Eu morro de medo de lobisomens”, admitiu
Amanda.
“Vocês já ouviram falar da lenda do demônio
de olhos amarelos?”, pergunta Thabata.
“Qual, aquela que aparece em Supernatural?”,
indaga Gabriel.
“Essa mesma. A série se inspirou numa lenda
urbana. Dizem que ele mata suas vítimas com fogo, as queima até virarem
cinzas”.
“A Blood Mary é mesmo assustadora",
Guilherme torna a falar "tão sanguinária quanto nossa amiga aqui do
bosque, mas não tenho muito medo de demônios e lobisomens. Vocês sabiam que
havia tanto sangue espalhado pela clareira que, dizem, até hoje têm manchas nas
pedras?”
As duas garotas e Gabriel olharam em volta,
procurando uma pedra para verem se aquilo era verdade. Thiago, porém, olhava
fixamente para um local vários metros para trás de Guilherme. Quando este
falou, ergueu o braço da mão que segurava a lanterna, apoiando-o no joelho, e o
queixo na mão. Thiago olhava fixa e aterrorizadamente para o ponto onde o facho
da lanterna iluminava. Sua boca foi lentamente se escancarando enquanto seu
cérebro processava o que ele via.
Guilherme parecia não notar, procurando por
pedras no chão para provar o que havia dito, a lanterna ainda apontada para o
mesmo lugar. Os outros, porém, viram a expressão de Thiago, pois estavam de frente
para ele, e seguiram seu olhar.
Congelaram no mesmo instante, as
respirações presas nas gargantas.
Lentamente, por entre as árvores, um vulto
branco se aproximava, balançando de um lado para o outro, na luz fraca da
lanterna. Seus passos eram descompassados e leves, cambaleantes. A cabeça de
cabelos loiros estava pendurada na frente do corpo.
“Achei!”, Guilherme exclamou de repente,
erguendo uma pedra suja de marrom em um dos lados e baixando a lanterna ao
mesmo tempo.
Gabriel precipitou-se rapidamente à frente,
tomou a lanterna das mãos do amigo e apontou-a para o ponto que estava
iluminando antes.
Um olhar assassino, emoldurado por cabelos
longos e escorridos retornou o seu trêmulo e apavorado. A garota estava vários
metros mais perto do que segundos antes, na borda do círculo de luz da
fogueira. Vestia um vestido branco e rasgado, sujo de sangue. Suas mãos
brilhavam, escarlates.
“O que está...”.
Guilherme começou a perguntar, sendo
interrompido por um longo e cortante grito de Gabriel.
As garotas foram despertadas pelo pavor do
som e gritaram também. Os três se levantaram o mais rápido que puderam,
tropeçando e caindo no ímpeto de fugir. Thiago, por outro lado, estava
completamente paralisado, os olhos fixos nas mãos sangrentas da garota de
branco.
Quando Amanda, Thabata e Gabriel finalmente
conseguiram se levantar e começaram a correr, outro som quebrou o silêncio da
noite.
Os três param de repente, virando-se,
esquecendo-se do motivo de estarem correndo, porque aquele era a última coisa
que esperariam ouvir naquele momento.
Uma risada. Mas não uma risada qualquer, e
sim uma gargalhada daquelas que se dá quando se ouve uma piada espetacular.
Gabriel olha para Guilherme se contorcendo
no chão, então olha mais atentamente para o espírito que deveria estar ali para
matá-los e vê que ela sorri. No instante seguinte, reconhece-a.
“Marcelle...?”, alguns segundos depois ele
processa a informação completa. “Guilherme, seu desgraçado!”.
Gabriel sai correndo e pula em cima do
amigo, dando vários socos nele. Guilherme se defende e, rapidamente, imobiliza
o outro, ainda rindo. Depois de algum tempo se debatendo, Gabriel se rende. O
corpo se descontrai e um sorriso aparece em seu rosto.
“Seu filho da mãe! Seus dois filhos da mãe.
Eu pensei que fosse morrer!”.
Duas outras risadas cortam o ar silencioso
da floresta. Eles estão se esquecendo da hora e do local em que estão. As
garotas caíram na gargalhada também. Amanda dobrou-se em dois e Thabata estava
apoiada em uma árvore.
“Eu quase me mijei de medo!”, a ruiva
falou.
“Eu achei que fosse é morrer de
medo, antes que qualquer coisa conseguisse me matar”.
Um som abrupto fez todas as risadas
cessarem. Thiago havia se levantado do chão, deixando cair o lampião, que se
apagou.
“Vocês são loucos?!”, falou, quase
gritando. “Não sabem que não se deve brincar com essas coisas? Não se deve tirar
sarro de lendas urbanas! Isso só os faz ficarem mais furiosos! Vamos ter
muita sorte se essa garota não acabar aparecendo agora”.
Os outros cinco estavam parados, perplexos,
olhando para o amigo. Em seguida, desataram a rir novamente, todos de uma vez.
Thiago ficou parado no meio da clareira, a fogueira a iluminá-lo por baixo.
Guilherme, depois de alguns segundos,
conseguiu tomar fôlego para voltar a falar.
“Você é meio retardado mesmo, né, Thiago? Não
existe nenhuma garota que morreu aqui e voltou para matar os caras. Eu
inventei toda a história”.
Thiago parecia decidido a não desistir.
“Mesmo assim, existem seres que matam
justamente aqueles que zoam as lendas!”
“Ah, Thiago, cala a boca vai”, Gabriel
respondeu, bem mais relaxado do que antes. “Essas porcarias não existem”.
O garoto de óculos abriu a boca para falar
outra vez, pareceu mudar de ideia, então a fechou novamente. Parecia ter
percebido que nada do que falasse mudaria alguma coisa. Seu rosto estava sério,
como se tivesse tomado uma decisão.
Todos tornaram a se sentar ao redor da
fogueira, bem mais relaxados, exceto Thiago, é claro. Ele, relutantemente,
sentou-se um pouco mais longe de todos, de cara fechada, encarando as chamas.
“Vocês precisavam ver a cara que
fizeram!”, Marcelle, a garota que fingira ser o espírito, disse. “Acho que
nunca vi ninguém com tanto medo quanto vocês”, ela riu novamente. “Catchup?”,
ergueu as mãos, depois começou a limpá-las no vestido.
A conversa se tornou bem mais descontraída
depois disso, e também mais alta. O único que não estava à vontade era Thiago,
que continuava encolhido, afastado, lançando olhares furtivos para as árvores.
Guilherme puxou alguns pacotes de
salgadinhos de sua mochila e distribuiu entre os amigos, que, felizes,
começaram a comer ruidosamente. Thiago recusou a comida, encolhendo-se ainda
mais com o aumento do volume de barulho que estavam fazendo.
Ele parecia o mais louco de todos, só que
não. Realmente era o único sensato ali.
Um estalo no meio das árvores, um
sobressalto, tudo passado despercebido. Os olhos do garoto se apertaram e
concentraram ao máximo, tentando por tudo vencer a escuridão que havia por
entre os troncos. Ele não conseguia ver nada, contudo, nem um movimento, nada.
Seu coração estava acelerado, retumbando no peito. Os outros não notaram nada
de diferente, absortos nas conversas e risadas. Começaram novamente a falar
sobre lendas urbanas, mas não contavam mais as histórias. A constatação de que
a garota que pensaram ser a da lenda contada por Guilherme era a amiga deles,
Marcelle, pareceu ter tirado o medo de todos, que falavam despreocupadamente
sobre as histórias, satirizando-as, provocando os seres que habitam a
escuridão.
Thiago começou a produzir ruídos sem sentido.
Cada vez mais o medo entranhando-se em sua mente, sua alma, seu ser.
Quando aconteceu, foi tudo muito de
repente, muito rápido.
Um vento, uma sombra, um farfalhar
desconexo como se algo vasto e invisível atravessasse o ar muito rapidamente.
No instante seguinte, tudo voltara ao
normal.
Os olhos de Thiago estavam arregalados,
quase saltando das órbitas. Os outros não pareceram perceber nada, estavam
falando mais alto do que nunca, gargalhando histericamente como se estivessem
seguros em suas casas.
“Calem a boca!”.
Subitamente, Thiago gritou. Estava de pé,
sem se lembrar quando foi que se levantou. Os outros, assustados com a reação
súbita do garoto, calaram-se instantaneamente.
Thiago olhava fixamente para frente, para o
ponto onde achava que tinha visto a sombra. Seu coração parecia estar sendo
tocado por um exímio baterista. A respiração saía em arquejos fracos, incapaz
de colocar oxigênio suficiente para dentro de suas veias. Sua visão embaçou
momentaneamente, fazendo-o cambalear um ou dois passos. Piscou com força,
desesperando-se ainda mais com a possibilidade de desmaiar bem ali.
“Você é louco, não é?”, Guilherme
perguntou. Todos estavam olhando para Thiago, ainda. Nos rostos as expressões
iam do medo à descrença, passando pela ironia e pena.
“Eu sou louco? Eu?!”. Thiago estava ficando
histérico. “Vocês estão aí, feito um bando de retardados, tirando com a cara de
todas as lendas urbanas que podem se lembrar, e acham que é a coisa mais normal
do mundo!”. Suas mãos estavam geladas, fechadas em punhos enquanto falava,
esforçando-se para não deixar a voz afinar devido ao medo. “Eu vou embora
daqui. Vocês terão sorte se voltarem para casa”.
Ninguém conseguiu pensar em nada para
falar. Para eles, a situação era tão ridícula que realmente ficava difícil dar
uma resposta à “loucura” do amigo.
Mas mal Thiago tinha dado três passos,
estacou, o olhar fixo à frente. Um segundo depois, recuou rapidamente, de
costas, tropeçou em uma pedra e caiu pesadamente no chão.
“Ah, qual é, Thiago”, começou Gabriel, “vai
nos dizer agora que está vendo alguma coisa? Você é um cagão mesmo”.
“Vocês mataram a gente. Vamos todos
morrer...”, o garoto falou, as palavras se perdendo, fugindo do sentido lógico.
“Estamos todos mortos”.
Os outros estavam totalmente descrentes.
Ainda assim, Guilherme acendeu novamente a lanterna e apontou para o ponto onde
fixava-se o olhar de Thiago. O facho de luz passou entre dois troncos de
árvores. E não se perdeu na escuridão além.
Veias vermelhas corriam pelo branco de um
par de olhos vidrados e arregalados, emoldurados por cortinas negras de cabelos
emaranhados, que desciam, revoltos, por cima de um vestido de linho branco.
Várias manchas de sangue fresco se espalhavam por ele em vários pontos. Dos
dedos, mais sangue pingava, como se as mãos estivessem em uma vasilha cheia
dele um segundo antes. Ou então tivessem rasgado alguém um segundo
antes.
Uma gota de sangue brilhou com a luz do
fogo antes de cair no chão.
Um grito grave e alto destruiu o silêncio.
Guilherme se levantou correndo, sem nenhum vestígio da presunção anterior, de
toda a sua confiança. Estava completamente apavorado. Deixando os amigos para
trás, disparou na direção das árvores. Antes que pudessem chegar até elas,
porém, a garota desapareceu de onde estava e reapareceu na frente dele.
Guilherme parou derrapando, inverteu a direção e disparou novamente, porém,
outra vez, foi interceptado pela garota. Um sorriso, muito mais um esgar, na
verdade, distorceu a boca dela. Estava se divertindo com o pânico do garoto.
Thiago balbuciava, sem sentido, e antes que
alguma outra coisa acontecesse, sumiu por entres as árvores, cambaleando.
As garotas tinham se agarrado, ainda
sentadas no chão, e Gabriel estava completamente atônito, sem parecer ver o que
estava acontecendo ao seu redor.
Guilherme parou de tentar correr e foi
apenas se afastando, trêmulo, enquanto a garota se aproximava dele, ainda com
aquele macabro sorriso no rosto, até que desapareceu.
O garoto olhou para os lados, procurando-a,
e então congelou. Virou-se abruptamente e deparou-se com aqueles olhos cruéis a
centímetros dele. Antes que pudesse gritar, antes que pudesse fazer qualquer
coisa, ela se moveu.
O único som que Guilherme conseguiu
produzir foi uma exclamação de espanto, como se tivesse levado um susto. Sua
cabeça baixou lentamente, os olhos percorrendo todo o caminho do rosto da
garota, passando pelo braço e chegando à mão. Ou tentando chegar, pois ele não
podia vê-la, já que ela estava dentro dele.
Seu sangue manchou rapidamente a roupa e
começou a escorrer pelo braço dela, que, rindo, subiu a mão, dentro da barriga
de Guilherme, torcendo-a.
Essa foi a última coisa que os outros
viram. No instante seguinte estavam gritando e correndo para o meio das
árvores, Amanda e Thabata precisando arrastar Marcelle para impedi-la de correr
para Guilherme.
Menos de um minuto depois, o brilho da
fogueira tinha desaparecido. Estavam mergulhados na total escuridão.
Continuaram a correr, querendo se afastar ao máximo da clareira e do espírito
da garota, onde o amigo deles morria.
Uma das garotas tropeçou, soltando um
grito, levando as outras juntas.
Gabriel percebeu, mas não parou de correr.
As garotas estavam sozinhas. Quando todas conseguiram ficar finalmente em pé,
não há mais vestígios do outro amigo em lugar algum, nem mesmo um som. Olharam
a volta, sem saber de onde tinham vindo, para onde estavam indo, sem conseguir
enxergar nada além de alguns poucos metros à frente, com muita dificuldade.
Enquanto isso, Gabriel não parou de correr.
Precipitou-se pelas árvores cegamente, esbarrando com força nelas, indo ao chão
várias vezes. Depois de correr por quase cinco minutos, teve que parar. Sua
cabeça rodava com a falta de oxigênio e seu corpo doía depois de tantos
encontrões e quedas.
Lembrou-se, de repente, do isqueiro em seu
bolso. Pegou-o e o acendeu. A chama brilhou solitária em meio a um mar de
trevas, sem se mover.
Com a chama mais a lhe cegar do que
iluminar, Gabriel avançou, cambaleante. Após poucos passos, um brilho repentino
lhe chamou a atenção. Paralisou-se. Alguns segundos de tensão depois, moveu o
isqueiro no ar, tentado enxergar o que poderia ter brilhado. O brilho se
repetiu, e dessa vez ele conseguiu ver de onde vinha.
Andou hesitantemente na direção da luz
intermitente, temendo o que poderia encontrar.
Quando todas as árvores desimpediram seu
caminho, percebeu que era uma chama. Quanto mais se aproximava, mais estranho
aquilo lhe parecia. A chama estava na mesma altura que a sua, e parecia tão
idêntica... Seu cérebro não conseguia processar aquilo. Se não estivesse
perdido no meio de uma floresta, diria que aquilo era um espelho. Mas como
podia ser possível?
A um metro de distância, parou. Seus olhos
brilhavam com a luz imóvel de seu isqueiro, ambas refletidas para ele por um
espelho que flutuava no meio do ar, sem apoios visíveis.
Antes que o garoto pudesse processar
qualquer coisa a respeito da impossibilidade disso, viu que não estava mais
sozinho no reflexo.
O ar ficou preso em sua garganta quando a
garota, toda coberta de sangue, avançou para ele, e a única coisa que conseguiu
pensar foi em seu nome: Bloody Mariy, Em seguida veio o grito.
Um som cortante chegou até onde as garotas
estavam, um grito vindo do meio da escuridão. Marcelle começou a chorar. Seu
corpo se sacudia com os violentos soluços, e por mais que tentasse manter
silêncio, estava fazendo muito barulho.
“Shh, mais baixo, Marcelle, por favor”,
falou Thabata, abraçando a amiga, tentando acalmá-la.
“O Guilherme”, Marcelle se esforçou para
dizer entre um soluço e outro, “o Guilherme... ele está, está morto...”.
Lágrimas começaram a descer pelo rosto da
Amanda também, mas estas eram silenciosas, e graças à escuridão, ninguém além
dela tomou ciência disso.
De repente, um som chega até elas. As três
se agarraram umas às outras, o pânico atingindo níveis astronômicos, até que
notam uma luz cambaleante por entre as árvores. Era Thiago.
“Precisamos continuar”, ele falou
urgentemente, “Temos que sair daqui, senão vamos todos morrer”. Em uma das
mãos, carregava o lampião que havia deixado cair e se apagar.
O choro de Marcelle aumentou de
intensidade. Thabata olhou de cara feia para o garoto. Amanda, porém, sabia que
ele estava certo. Tinham que sair logo dali.
“Vamos, temos que encontrar a saída”, a
garota morena pegou no braço das amigas com mãos trêmulas e tentou fazê-las se
moverem. Depois de quase dois minutos de insistência, eles finalmente começaram
a andar.
Thiago vai à frente, iluminando o caminho.
Na quase completa escuridão, cheios de terror, eles estavam tendo dificuldades
em se localizar. Haviam corrido à esmo pela mata, e podiam estar ainda mais
longe das entradas.
Caminharam por mais de meia hora sem
encontrar nada, sem ouvir um único som.
“E o Gabriel? A gente tinha que
encontrá-lo, não?”, Amanda perguntou para ninguém em especial.
“E se a menina tiver o encontrado também?”,
desesperou-se Thabata.
Marcelle começou novamente a chorar,
cobrindo a boca com as mãos para abafar o som.
“Quietas, todas vocês!”, Thiago explodiu em
voz baixa. Por mais que fosse quem mais tivesse medo de lendas urbanas antes,
parecia ser o que estava melhor administrando a situação. "Acho que ouvi
alguma coisa".
As três congelaram na mesma hora,
paralisadas de medo, tentando escutar alguma coisa. Um galho parecia ranger
levemente mais à frente, como se alguém estivesse em cima dele. O silêncio era
tão profundo, sem um único farfalhar de folhas, que aquele tênue som (o único
além das respirações entrecortadas deles) se destacava gritantemente. Thiago
apontou para o alto das árvores e as garotas lançaram olhares amedrontados para
cima, girando para tentar enxergar alguma coisa no alto, sem se afastarem umas
das outras.
Thiago incitou-as a andar, o mais devagar
possível, segurando o lampião bem alto para que sua luz fraca iluminasse a
maior área possível.
Em certo momento, ele fez sinal para que
todas parassem. Diminuiu a luz do lampião até que ela quase se apagasse, e na
escuridão que se seguiu, conseguiram distinguir uma difusa luz azul bruxuleando
mais à frente, bem perto do chão.
Seguiram em direção da luz, todos pensando
nas terríveis histórias de criaturas que usavam luzes para atrair pessoas
perdidas em matas para se alimentarem delas.
O ranger do galho continuava ritmicamente,
hipnoticamente, na mesma direção de onde vinha a luz.
Quando ultrapassaram as últimas árvores que
os separavam, entraram em uma pequena clareira de onde poderia se ver retalhos
do céu, caso fosse uma noite com lua. Os garotos perceberam que a luz provinha
de uma pequena chama azul no chão, que se agitava levemente, ainda que eles não
sentissem vento algum.
O fogo era azul e com um formato definido;
logo se via que não era uma tentativa de fogueira. Na clareira, o ranger do
galho era mais alto.
Com uma terrível sensação de
reconhecimento, Thabata arrancou o lampião das mãos de Thiago e aumentou sua
luz.
Um grito, som de vidro se quebrando, e
novamente a luz do lampião se apagou quando ele caiu no chão. O cheiro de
querosene se espalhou pelo ar.
Gabriel estava pendurado no ar, de cabeça
para baixo. Sangue escorria pela sua testa enquanto ele balançava de um lado
para o outro como um pêndulo.
“Meu Deus, Gabriel!”, Thabata exclamou,
muito mais alto do que seria sensato. "Rápido, me ajudem com ele, por
favor!".
A
garota estava desesperada, tocando a esmo o corpo do garoto pendurado, sem
saber como tirá-lo dali.
“Alguém tem uma faca? Precisamos cortar a
corda”.
Nenhum dos outros havia se mexido ainda.
“O que é que há com vocês?”, a garota
exasperou-se.
Amanda levantou uma mão e apontou para o
céu.
“Hoje é lua nova”.
“E? O que é que isso importa?”.
A Amanda não respondeu, apenas continuou a
apontar e olhar para o céu.
Cedendo, Thabata levantou o olhar.
Uma lua cheia, gorda, brilhante, enorme e
meio amarelada, cercada por um halo de nuvens que projetavam sua luz, fazendo-a
parecer ainda maior, brilhava no céu.
Antes que Thabata pudesse arfar, um uivo
cortou o ar. Era alto e gritante, cheio de ódio e crueldade.
Marcelle gritou e se encolheu no chão,
Thabata deu um passo para longe de Gabriel, e no segundo seguinte, viu um par
de olhos amarelos brilhando no alto, no lugar onde estaria o galho que prendia
o garoto.
Ela gritou, tropeçou e caiu para trás. No
segundo seguinte, impossivelmente, a chama do isqueiro de Gabriel aumentou
centenas de vezes de tamanho, rugindo como uma enorme fogueira e envolvendo
todo o tronco de Gabriel. A garota gritou outra vez e tentou fazer alguma
coisa, mas em segundos o corpo do menino já tinha sido envolto em chamas. Ele
se sacudia e gritava, ardendo como uma tocha.
O uivo tornou a singrar o ar, mais alto,
mais próximo. Amanda e Marcelle seguraram os braços da amiga e tentaram fazer
com que andasse, mas ela não se moveu. Estava travada no chão, os olhos fixando
algo além de onde o amigo gritava e se contorcia.
Um par de olhos amarelos se aproximavam,
brilhando, pela escuridão. As outras duas garotas também viram. Tomadas por um
pânico irracional, correram para longe da clareira, abandonando a amiga, o
vulto negro aproximando-se cada vez mais dela.
Correram até que o som do fogo
desaparecesse, tentando correr até que os gritos cessassem, mas o som da voz de
Thabata seguiu-as ecoou como uma maldição pelo ar. Só depois de estarem muito
longe da clareira, pararam. Pontadas agudas perfuravam os pulmões e as cabeças
rodavam. Depois de quase um minuto paradas, notaram o que estava faltando.
“Onde está o Thiago?”.
Marcelle olhou ao redor, tentando responder
à pergunta da Amanda.
“Ele deve ter ficado na clareira também, ou
então correu antes, sem que a gente percebesse”.
“Espero que ele esteja bem...”, Amanda
respondeu, estremecendo. “Vamos, não podemos ficar paradas, temos que sair
daqui”.
Marcelle, ao invés de andar, caiu no chão,
voltando a chorar.
“Vamos morrer, Amanda... Vamos morrer como
eles”.
Os soluços sacudiam seu corpo enquanto ela
abraçava os joelhos.
Amanda se aproximou rapidamente da amiga e acertou
um tapa em seu rosto. O som estalou pelo ar e a outra garota parou de chorar na
mesma hora.
“Nós não vamos morrer, Marcelle. Não vamos!
Agora levanta e vamos embora daqui!”.
Uma respiração pesada e arfante. Um
movimento, um salto, um estalar de mandíbulas e ossos. Marcelle gritou quando
algo grande e cheio de pelos arrancou a amiga da sua frente.
Os olhos da Amanda estavam vidrados, sem
entender direito o que estava acontecendo, ainda sem perceber a dor. Ela caiu
com força no chão quando a besta a soltou. Seus olhos se fixaram na fera acima
dela, um homem com formato de lobo, ou um lobo com formato de homem, impossível
saber, porém muito maior que os dois juntos.
O seu grito foi alto e lancinante, daqueles
que só se ouve em filmes, tão cheio de pânico e terror que qualquer um que o
ouvisse sentiria medo também.
No segundo seguinte ele foi silenciado pelo
arrancar de sua cabeça.
O sangue jorrou para todos os lados,
brilhando à luz intensa daquele luar maligno. Os rosnados da fera se abafaram,
saindo molhados enquanto ele despedaçava o corpo da garota.
Lentamente, Marcelle deu a volta no bicho,
levantou-se e correu o mais rápido que suas pernas fracas e trêmulas
permitiram, soluçando tão alto, fazendo tanto barulho enquanto andava que
qualquer coisa que estivesse por perto a ouviria.
Assim que se afastou do lugar onde o
lobisomem despedaçava Amanda, a floresta voltou a mergulhar no mais profundo
breu. A lua havia desaparecido do céu. Quando notou isso, vários minutos
depois, Marcelle parou de correr. Não fazia ideia do que estava acontecendo,
nem como, nem por que. Só sabia que todos os seus amigos estavam mortos, e que
ela seria a próxima.
No meio das trevas, um pensamento lógico
surgiu.
Onde estava Thiago?
Pensou em procurá-lo, mas não queria correr
o risco de encontrar o lobisomem ou todas as outras coisas que poderiam estar
ali.
Sentou no chão, tremendo, chorando e
soluçando, lembrando-se das cenas de seus amigos morrendo. Foi aí que conseguiu
fazer a ligação.
A Amanda tinha medo de lobisomens. A Thabata
tinha medo do demônio de olhos amarelos. Mas o Gabriel não tinha sido morto
pela Blood Mary... Bem, pelo menos era o que ela pensava. O Guilherme não tinha
inventado a lenda da garota do bosque, ela sabia disso, porque ele tinha
contado para ela antes. E a garota havia matado ele. Eles estavam sendo mortos
pelos seus maiores medos, pelas lendas que temiam.
E quem ela temia?
Um forte tremor sacudiu seu corpo, todos os
pelos se arrepiaram, e logo ela não conseguia parar de tremer. Lágrimas
profusas inundaram seus olhos e ela as odiou, pois não conseguia enxergar
direito.
Quem ela temia?
Uma lenda pouco conhecida, exatamente o ser
que poderia fazer com que tantas lendas aparecessem em uma única noite, que
poderia fazê-los pensarem que havia lua numa noite em que ela não estava no
céu.
Ela fechou os olhos com força, tremendo
mais do que nunca.
Quando os abriu, deu de cara com uma
fogueira, já nas brasas. Uma fogueira que ela tinha visto ser acendida enquanto
estava escondida no meio da árvores. Ao seu lado, um lampião apagado. Um pouco
mais além, um isqueiro jogado no chão, ao lado de uma mochila.
Ela sabia que essa não era a aparência real
dele, mas naquele momento o que ela mais temia era um garoto que tinha surgido
há pouco tempo na turma deles, era alto magro, usava óculos e tinha cabelos
espetados, usava jeans rasgados em um joelho e uma camiseta branca.
Ela ergueu-se, olhando ao redor. Ali
estavam Guilherme, Gabriel, Thabata e Amanda, jogados no chão, as gargantas
rasgadas, os membros abertos em ângulos estranhos.
Ela temia uma criatura incrível, que se
alimentava do medo da pessoas, do pavor, do pânico. Era por isso que fazia com
que pensassem que estavam sendo mortos por aquilo que mais temiam. Tornava o
medo mais real e intenso.
Marcelle deu um passo em direção à
fogueira.
Quem ela mais temia era O Ilusionista.
Às suas costas, uma voz sussurrou em seu
ouvido.
“Oi Marcelle”.
Termino de contar minha história. Todos
estão me olhando com caras de espanto, boquiabertos, impressionados. Estou
sentado um pouco além da luz da fogueira, de forma que meu rosto está meio
oculto nas sombras.
- Cara, essa história foi muito boa. – fala
um dos garotos do grupo.
- Foi incrível! – completa outro – Nunca
tinha ouvido falar d’O Ilusionista.
- Eu também não. – fala Raquel – Você sabe
onde a lenda se originou?
Inclino-me um pouco para frente, de modo
que meu semblante seja banhado pela luz ondulante.
- Ela se originou em grupos como este, que
resolvem se reunir no meio do nada para contar histórias de lendas urbanas que,
no fundo, eles acreditam que existem, mas que, por fora, mostram desprezo e
desdém. Alguns são discretos, mas é possível ver essas emoções na forma
despreocupada com que contam a história, na falta de medo que usam para falar
de criaturas malignas. O Ilusionista é como um justiceiro, mata aqueles que
zombam das lendas, faz a justiça quando eles próprios não têm como fazer. Ele
só está do outro lado, do lado das trevas.
De repente, aconteceu.
Um vento, uma sombra, um farfalhar
desconexo como se algo vasto e invisível atravessasse o ar muito rapidamente.
No instante seguinte, tudo voltara ao
normal.
Só que, ao contrário da história, todos os
presentes ali perceberam isso. E então começaram a perceber as semelhanças: a
camiseta e os jeans, os óculos, o cabelo espetado, a magreza.
- Qual o seu nome? – veio a pergunta
amedrontada e trêmula de algum deles.
- Quem é você? – outro falou – Nunca te vi
antes.
- Vocês ouviram a minha história - tornei a
falar, ignorando as perguntas deles - Eu tentei avisá-los. Eu sempre tento
avisá-los. Mas vocês nunca me escutam, nunca dão atenção. Sou um ser justo, o
que eu posso fazer, então? Vocês que acabam escolhendo isso. Depois de algumas
décadas, a pessoa acaba cansando de tentar ajudar. Cansei de avisar.
Sorrio, meus olhos brilham de uma maneira
interessante. Todos prendem a respiração, amedrontados. Um uivo distante corta
a noite.
Finalmente vem a pergunta certa.
- O... o que... o que é você?
Finalmente.
Respiro fundo.
A fogueira se apaga na mente de todos, o
medo preenche o ar.
E então, os gritos.
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